Há muitas maneiras de tratar do 2 de Julho, ou, mais formalmente, da Independência do Brasil na Bahia. Ao longo de 200 anos, História e Memória, com suas distintas implicações, se mesclam. Sobretudo considerando que se trata de uma das festividades cívicas que conservaram com vigor sempre renovado o caráter popular. Seus símbolos e personagens são tão ricos que nos permitem uma grande variedade de interpretações e formas de refletir sobre os significados deste bicentenário – daí a importância de entender melhor o contexto deste processo.
Os acontecimentos da independência do Brasil na Bahia trazem à memória os eventos em Cachoeira, Itaparica e, claro, Pirajá, mas é necessário pensá-los dentro do quadro mais geral de uma guerra de vários meses, entre fevereiro de 1822 e julho de 18231, com consequências duradoras. Os conflitos, com efeito, aconteceram em Salvador e no Recôncavo, mas com envolvimento de vilas e regiões mais distantes, como Rio de Contas e Caetité.
Também cabe ressaltar o significado da luta para além das fronteiras da então província: Salvador era um dos principais portos comerciais atlânticos no período, inserida numa rede de relações que, entre outros, envolvia o Rio de Janeiro, a sede do império desde 1808, após a fuga da corte portuguesa para a América; a costa da África, cujo infame comércio de pessoas escravizadas era a base de sustentação da elite social e econômica, ligada ao açúcar; e a relação com Portugal, que havia sido invadido na primeira década do século XIX e passava por intensas convulsões sociais com a Revolução Liberal do Porto em 1820 e a convocação de uma Assembleia Constituinte no ano seguinte, a qual contava inclusive com representação de províncias brasileiras2. Nesse contexto, a divergência entre os projetos de portugueses e de representantes das províncias do Brasil não tardaram a aparecer. Os grupos oriundos do Rio de Janeiro e de São Paulo perceberam a proposta apresentada na Constituinte como uma subjugação, um retorno a um status quo anterior, num momento em que o Rio de Janeiro já era uma das cidades mais importantes do continente, dotado inclusive de instituições e quadros políticos de uma capital.
Para representantes das províncias do Norte, a centralidade do Rio de Janeiro e adjacências, como São Paulo, era motivo de incômodo e até de levantes, como a Revolução Pernambucana, em 1817. Tratar com Lisboa era mais fácil e mais rápido. Este cenário era ainda mais instável em função do alarme constante de revoltas de escravizados, como o levante Hauçá de 1814, nas proximidades de Salvador. Mas havia outros focos de antagonismo entre setores da elite baiana e do Recôncavo e portugueses, como era o caso dos juros cobrados em empréstimos para senhores de engenho e as limitadas condições de participação política3.
Portanto, a cidade da Bahia começou o ano de 1821 tomada por tensões entre portugueses e brasileiros de várias classes, com entendimentos distintos sobre a igualdade de direitos entre súditos brasileiros e lusitanos de um mesmo rei4. O retorno dos representantes da Bahia enviados à Assembleia Constituinte, expondo as propostas desiguais dos liberais portugueses, acirrou ainda mais os ânimos.
No contexto das independências na América, entre o final do século XVIII e o começo do século XIX, criou-se um espaço para propor sentidos mais ampliados para termos como ‘independência’ ‘cidadania’, ‘direitos civis’, e ‘liberdade’. Apesar da aparente homogeneidade entre os objetivos daqueles que lutaram contra as forças lusitanas, distinções aparecem quando se olha mais de perto. Escravizados combatiam pela liberdade; um liberto, por direitos civis; descendentes de Africanos mais prósperos, como Antônio Pereira Rebouças e Francisco Brandão Montezuma, por maiores possibilidades de inserção na sociedade que se desenhava, com as linhas que separavam os estratos sociais menos rígidas; um senhor de engenho, pelo fim de suas dívidas com credores lusitanos de Salvador, tanto quanto por um regime constitucional mais vantajoso5. Como se pode ver, o quadro dos combatentes da Santa Causa, como era então denominada era heterogêneo.
O grupo que capitaneou este processo era uma elite, em geral formada na Universidade de Coimbra, ou, em alguns casos, ligada à burocracia do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves. Isso propiciou certo sentido de unidade que foi ganhando definição ao longo dos primeiros meses de 1822, até os eventos mais dramáticos entre junho daquele ano e julho do ano seguinte. Mas havia outro pressuposto que movia os interesses deste grupo, total ou parcialmente dependente da atividade econômica açucareira: a manutenção da mão de obra escravizada e dos laços senhoriais que davam sentido à sociedade baiana6. Desta miscelânea de interesses distintos é que se deu o processo de independência do Brasil na Bahia.
Se os interesses envolvidos eram plurais, o mesmo pode ser dito dos personagens envolvidos. Se há uma galeria conhecida – Joana Angélica, Maria Quitéria, os irmãos Calmon, Francisco Brandão Montezuma, o Morgado da Casa da Torre e seus irmãos – por outro lado há figuras que são anônimas ou recordadas na memória – as mulheres de Saubara, com suas panelas de mingau; Maria Felipa em Itaparica. Neste jogo, ficam manifestos, inclusive, silenciamentos da produção do saber sobre o passado e a invenção das tradições.
Nesse ponto, é importante lembrar que não havia Legislativo baiano em 2 de Julho de 1823. O Conselho Geral de Província, previsto pela Carta Outorgada de 1824, pode ser visto como um ancestral, mas é apenas em 1835 que se organizaram, em todo o Império do Brasil, as Assembleias Legislativas Provinciais. Contudo, a produção Legislativa da Assembleia Provincial tratou da exaltação da guerra do 2 de Julho pelo menos desde 1837 – e, em muitos momentos, garantiu verbas orçamentárias para os festejos. Cabe também ressaltar que muitos dos que tomaram parte nos eventos de 1822 e 1823 estiveram nas primeiras legislaturas provinciais e ajudaram a moldar a forma do Poder Legislativo baiano, retomando debates já indicados no 2 de julho sobre cidadania, liberdade, independência, nação, dentre outros.
A proposta desta seção do portal da Assembleia Legislativa da Bahia é contar um pouco desta História, um dos primeiros momentos no qual a relação entre o Poder Legislativo e a Sociedade Baiana se estabeleceu, de forma fecunda e duradoura.
NOTAS DO TEXTO
1TAVARES, Luíz Henrique Dias. Independência do Brasil na Bahia.
2. ed. Salvador: EDUFBA, 2005, p. 13.
2TAVARES, Independência do Brasil na Bahia, 2005.
PEREIRA, Manoel Passos. O processo de Independência do Brasil Baiano:
Política, Guerra e Cultura, 1820-1823. Salvador: EDUFBA, 2021.
3GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e
direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças.
São Paulo: Civilização Brasileira, 2002, p. 55.
4TAVARES, Independência do Brasil na Bahia, 2005, p. 68-71.
5GRIMBERG, O fiador dos brasileiros, 2002, p. 33.
6TAVARES, Independência do Brasil na Bahia, 2005, p. 90.
NOTA DAS IMAGENS:
SILVA, Pedro Gonsalves da. [Monumento ao Dois de Julho. [S.l.: s.n.].
1 foto, Cópia fotográfica albuminada, p&b, 13,8 x 10. Disponível em:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=67059.
Acesso em: 26 out. 2022.
Maria Quitéria. SOUZA, Bernardino. Heroinas Baianas.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1936. p. 98.
Joana Angélica. In: SOUZA, Bernardino. Heroinas Baianas.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1936. fl. 6.
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